quarta-feira, 27 de julho de 2016

A Vítima do Preconceito



Aí estava eu na fila da alfândega, vencedora! Voltando da visita aos meus pais, muito pobres, na África, retornando para a minha atual casa, em Paris. 

Vim tentar a vida na França, muito jovem, com meus trinta e dois anos,  já formada em antropologia e, mais, com mestrado e doutorado. Fiz carreira acadêmica. Eu, a primeira da família a frequentar uma universidade. A primeira a andar de avião. A primeira a ter um carro e o orgulho dos meus pais e da pequena comunidade que eles vivem, mais correto denominar da tribo que eles vivem. Hoje ajudo todos, meus pais, a maioria dos meus oito irmãos e até mesmo uma pessoa da comunidade.

Mas isso teve um preço! Claro! Principalmente no preconceito racial! Fui perseguida, puxaram o meu tapete várias vezes, desmerecida, desacreditada, somente para falar no lado profissional, tudo por ser negra.

Mas agora venci e estou retornando para a minha casa em Paris, estabilizada e, no alto dos meus quarenta e seis anos, não deixo mais qualquer preconceito por menos e luto pela minha cor, minha cultura e pelos meus irmãos... Por isso uso minhas roupas europeias, mas sempre ostentando o meu turbante tribal!

De repente, na fila, sinto umas pequenas mãos me empurrando! Olho para baixo e sai correndo uma criança branca, de cerca de cinco ou seis anos e logo a mãe me pede, em português, desculpas. Não respondo e olho fulminantemente para a mãe.

O que é isso? O que essa mãe pensa que é? Qual a criação que ela deu para o filho? Tocar nas pessoas porque são negras? É por isso que existe preconceito no mundo! Por isso que sofri tanto! Essas mães desde cedo ensinam os seus filhos a fazerem chacotas e serem racistas! 

Não falo nada e vejo a criança branca tentando correr na fila da alfândega, cantando alto músicas mal interpretadas e com uma dicção de palavras imperfeitas, algumas vezes em português, outras em inglês e outras vezes em uma língua incompreensível.

Volto à fila pensando no que ocorreu! Preconceito! E sinto novamente uma trombada nas minhas costas! Outra vez a criança branca que, como se nada tivesse acontecido, sai correndo e cantarolando as músicas incompreensíveis! O pai de pronto pediu desculpas em português!

Mas não aguentei! Não vou mais suportar qualquer tipo de preconceito branco! Não mais agora! Me voltei para a mãe (claro, teria que ser ela! Mesmo que o pai estivesse perto, foi ela quem criou e é sempre mais fácil tratar com a mulher) e perguntei, no melhor inglês! Claro! Língua universal e dos dominadores! Língua forte e com o meu linguajar perfeito e puxando para o sotaque americano para demonstrar ainda mais que não ia me submeter a preconceitos, bem ao estilo Malcom X:

- Por que o seu filho está tocando em mim?

Aguardei! A mãe paralisou! Criei o impacto e demonstrei que não sou uma qualquer!

O pai se aproximou e perguntou o que foi. Repeti com a autoridade dos Panteras Negras:

- Quero saber por que o seu filho está tocando em mim!

O pai, em tom de explicação, em um inglês tosco e cheio de falhas, se voltou e disse:

- O meu filho tem autismo e algumas vezes é difícil controlá-lo... Mas me desculpe!

Desta vez quem congelou fui eu. Não falei nada. A fila andou, dei as costas e segui na fila.... Mas logo voltei ao pai e disse, tentando arranjar a minha primeira justificativa:

- Tem uma fila de prioridade!

O pai responde, já com o filho no colo:

- obrigado!

Fico pensando: Será que ele vai carregar a criança somente para não me tocar mais por toda a fila? Em uma fila que já estava a cerca de uma hora e meia e mal tinha passado da metade? Em mais uma reação espontânea e sem muito pensar, me volto ao pai, e digo:

- O seu filho pode me tocar de novo!

Mais um "obrigado" do pai, com a criança no colo! Desta vez com a mãe se oferecendo para o pequeno passar para o colo dela!

Mas ora, por que os pais não entraram na fila de prioridades? Eles têm direito! Por que sujeitar a criança a essa fila? Será que eles querem levar a criança da forma mais normal possível? Essa hipótese não pode existir!

E, também, como iria adivinhar? Se tivesse síndrome de down ou fosse cadeirante seria completamente perceptível! Mas autismo? Não são aqueles que ficam parados na frente de uma parede, se balançando ou jogando uma bolinha incontáveis vezes no chão? esse era risonho! Somente corria e cantava umas músicas indecifráveis! Seria autismo mesmo?

De uma forma ou de outra, não conseguia mais olhar para a família! Pai e mãe se revezando com a criança no colo e a própria criança me parecendo que sentiu o impacto! Já se atracava no colo e deitava a cabeça no ombro de quem estivesse! 

E eu olhando para baixo! Sem ter coragem de levantar a cabeça por medo de um soslaio chegar na família ou, o que seria pior, na criança branca....

De repente aparece um fiscal da alfândega, primeiramente chamando uma família com duas crianças negras que estavam no meu vôo e, depois, chamando a família da criança branca problemática, dizendo para irem para uma outra fila, quase vazia, para passarem mais rápido.

Alívio! Pude levantar a cabeça, mas meus olhos encontraram os olhos do pai branco, que apenas teve a reação de me dar um "adeus", em um inglês melancólico e também aliviado!

Enfim... O meu preconceito desapareceu com a ida daquela criança alva problemática... Não sei se venci desta vez....

Do Porto, Portugal.

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